Monday, February 23, 2009

Água

Estava morta, não que estivesse mesmo morta e já não respirasse, estava morta apenas porque não vivia. Muitos estranhavam que estivesse viva, que na aparência continuasse imaculada. A carne continuava inteira e os germes não a queriam por banquete. Não tocava, não bebia, não vivia. Respirava é certo, falava e brincava como dantes. Mas a falta de água secou-lhe os olhos, levou-lhe a saliva e o suor. O seu corpo, frio feito de pedra impermeável deixou de sentir. Estava morta e os que lhe tocavam sabiam. Faziam um luto breve e seguiam com as suas vidas cheias de água, tão certas como as chuvas que levam os rios até ao mar.

De ontem

O mar estava calmo, murmurando a sua quietude à areia molhada, num namoro indolente e casto.

Friday, January 30, 2009

O chão

Dei por mim no chão. Nada mais havia abaixo de mim. O meu sorriso captivara uns tantos, mas não os suficientes para fazerem de mim pessoa. Eu era apenas um nome, um episódio,uma ilustração. Era uma personagem secundária em tantas vidas, em tantas horas, que preferi morrer. A morte apaga a mediocridade. É um designio dos deuses. Agora, espero apenas que me esqueçam para poder morrer. Sem, flores nem terra. Sem sorrisos, sem choro. Apenas deixar de existir. E observar como as partículas retornam à criação.

Sunday, November 16, 2008

Sesta

A luz entrava oblíqua por entre as frestas do estore, cantando o ritmo indolente a que as partículas de pó se moviam. As paredes do quarto estavam mornas, o lençol fresco cheirava a colinas debruadas de alfazema. O grande relógio da sala ecoava o tempo pelos corredores longos da casa, numa cadência que me embalava e forçava a dormir.

Friday, August 17, 2007

s a u d a d e

Quantos nós e quanto Tempo podem caber em alguém que ainda vive?
A pele branca, muito pálida, contrastava com a areia com que os turistas enchiam o Metro. Olha, alheia a cores e sons, o seu reflexo no vidro frio. Contempla as paredes gastas que passam do lado de lá como quem olha a vida que passa, com desdém e a certeza da morte certa.

Thursday, May 10, 2007

Viajante

Tem os cabelos grisalhos e desalinhados e sussura uma ladaínha insultuosa em jeito de prece. O corpo existe ténue por debaixo de andrajos coloridos de nada, da cor invisível que esconde os cantos esquecidos do mundo. Anda trémulo entre os corpos vivos, cheirando o sangue alheio que pulsa na cegueira que insiste em ignorá-lo. Tem os pés nus e estranhamente alvos, como se Deus invertesse a gravidade e nos quisesse mostrar que o saber está nos nossos passos e não nos pensamentos. Conhece o princípio e o fim dos tempos, tem em si todo o saber do mundo, sabendo que nada vale.

Vagueia suavemente entre os outros e prepara-se para apanhar o combóio que passa.

Tuesday, February 20, 2007

Pára

Dizem que um dia tudo pára. As vozes dos outros. Os carros nas ruas, as nuvens no céu. Que um dia o vento senta-se quieto à margem das folhas verdes e não lhes toca. Que um dia a última onda chega e deixa-se ficar esquecida na areia eternamente húmida. Porque um dia, dizem, o sol não aquece mais a luz congela um momento eterno que ninguém recorda. Um dia o meu coração pára e com ele o sangue morno que lentamente vai arrefecer. Um dia o ar deixará de entrar e sair dos meus pulmões em movimentos não contados, ao sabor de emoções que, um dia, não vou ter. Um dia, dizem, tudo deixa de ser importante para mim. Um dia, deixo de ser eu.

Thursday, August 10, 2006

Reencontro

Procuro-te. Teimo em querer encontrar-te. Procuro-te. Nas caras estranhas que me olham, nos olhos que me encontram e ignoro. Quero reencontrar-te, reconhecer o que tu eras, sentir os teus dedos frios a afastarem-me a franja rebelde dos olhos. Uma e outra vez. Só mais uma vez. Mas, sei que não reconheceria o toque, porque foi outra afinal que tocaste. Outra que poderias reencontrar. Não eu. Não o que sou hoje. Não te reconheço. Não de reencontro. Apenas porque, eu, nunca te conheci.

Ombros

Tem os ombros doces de mel, de pele lisa e brilhante, ligeiramente suada. Tem uns ombros que são meus, porque neles e só neles as minhas clavículas encaixam, porque o suor que os cobre tem o travo da minha saliva.