Thursday, October 06, 2005

Primeiro Dia

Sinto o sol na cara inundando de calor o espírito frio, gelado. Sinto um prazer contrariado sublinhado pela ressaca, pela falta de sono, pela exaustão.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

A música na rádio fala para mim. Mostra-me o que sou, faz-me pensar, ou sonhar, no estado em que me encontro é difícil distinguir o instinto da vontade.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

Estou triste, mas com a tristeza sei eu lidar. É um vazio que se instala, mas que nos torna inabaláveis.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

Cravo as unhas na pele das mãos, tentando ferir-me achando conforto e prazer nesta dor preversa. Não quero chorar. Não posso chorar. Seria ridículo. Uma invasão de um espaço privado que não é meu.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

Na igreja o tempo pára na frieza das paredes, na voz soturna de um padre que debita frases feitas que já não fazem sentido. Vou sorrindo cínica, achando graça ao vazio de um discurso que se pretende tão cheio. Lembro-me de outros tempos, em que estas mesmas palavras eram para mim.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

Os meus olhos divagam pela assembleia. Pelas caras, vejo tudo menos o que capta a atenção de todos. Nunca entenderei os rituais macabros de uma missa de corpo presente.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.

Saio para a rua e deixo o sol aquecer de novo o espírito que a missa gelara. Volto para o carro sózinha. Está a tocar Sigur Rós. Volto para casa a guiar à doida - possivelmente ainda alcoolizada. Há qualquer coisa em estar com um cadáver que me faz querer estar viva. Testar a fronteira entre a vida e a morte. Sentir doses absurdas de adrenalina no sangue.

E hoje é o primeiro dia do resto da minha vida.