Thursday, February 23, 2006

Ela sorria e o Mundo sorria com ela. Não lhe conhecia o nome, nem o toque, nem o cheiro. Mas sonhava com ela. Cruzava-se com ela nas ruas onde morava e guardava a sua voz junto ao peito. Sabia de cor a côr das suas roupas e a cadência exacta dos seus passos apressados. Queria mais e ao mesmo tempo estava satisfeito. Era amor. Mas não Amor.

Tuesday, February 21, 2006

Davas-me a mão e eu ficava bem. Mesmo com o pó daquela casa que é da minha história e que tu nunca vais conhecer. Eu estendi-te a mão e tu não a agarraste. Era tão simples. Mas não quiseste. Foi só aquele momento. Depois já estava na rua outra vez. Perdida. Não te via. Via rostos que não queria ver e que as luzes mostravam. Conhecia-os. Mas não os queria ver. Procurava mais. Tentava que os meus olhos lessem nas sombras o caminho de volta. Procurava-te de mão estendida, sem saber que esse instante havia passado. E que tal como a casa estava gravado apenas na minha memória.

Monday, February 13, 2006

Amnésia

A memória dela era o seu bem mais precioso. A memória dos dias que se seguiram à sua morte eram a sua maior tormenta.
Passeava a memória por aqueles dias, como quem percorre as ruas lúgubres do que fora outrora o cenário de um passado infeliz.

Friday, February 10, 2006

O azul celestial da manhã de inverno feriu-lhe os olhos com a morbidez da sua luz branca.

Wednesday, February 08, 2006

Aquele momento passou-lhe uma e outra vez pela cabeça. Perante o seu corpo morto, dentro de um caixão coberto de flores, apercebeu-se que nunca o tivera. Ele partira há muito, há tanto tempo, há uma vida. Tivera uma vida inteira longe de si. Para ele, ela era o nada, um rosto difuso, sem traços, talvez. Olhando a madeira polida à sua frente, lembrou-se de cada um dos traços. O recorte aquilino do nariz, a pequena cicatriz na fonte. Ouvia a voz jovem e confiante. O riso doce de menino-homem. Então soube. Soube que morrera. Que a sua vida acabara naquele instante longínquo que fora a última vez que o vira. E sorriu. Um riso leve e discreto, invísivel, para não incomodar aqueles que o choravam. Um sorriso breve com uma gargalhada contida. Sorriu, ao tomar consciência do próprio suicídio.